sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O que é Arte? Quais os seus limites, se é que os possui?



“Eres lo que lees”. A frase, escrita com biscoitos de ração para cães, foi colocada na parede branca de uma galeria de arte. Junto a essa parede, preso por uma corda e um fio de arame, foi deixado ao desprezo um cão de rua, abandonado e doente. A alguns metros foi colocado um incensário onde, alegadamente, se queimou crack e cannabis durante a inauguração. Sem água e alimento, o animal morreu na própria galeria durante o dia seguinte.
Passou-se na Nicarágua. Tratava-se de uma “instalação” do artista costa-riquenho Guillermo Vargas, conhecido como Habacuc.
A situação, denunciada pelo El País e documentada em várias imagens, tem merecido enorme divulgação na web e deu origem a uma petição online contra o seu autor que reúne, no momento em que escrevo estas palavras, perto de 50.000 assinaturas.

O assombro generalizado por este gesto cometido em nome da arte lançou uma discussão acesa sobre os seus limites. A questão não é nova. Desde que Duchamp assinou um urinol e o intitulou de “La Fontaine” que se debate o que é, afinal, a Arte. A piada centenária parece entretanto ter perdido a graça. Na sociedade do relativismo cultural o grotesco tornou-se uma demanda crítica. De vacas serradas ao meio conservadas em monólitos de fibra acrílica a diamantes encastrados em caveiras humanas, a produção artística contemporânea vive refém das lógicas do seu tempo. A arte tornou-se lugar para a execução de função do gesto estético. Tudo se submete à performance.
Que a arte se tenha de submeter a todo o tipo de degradação é uma triste consequência do desespero em ser visível. Uma arte demitida de qualquer desígnio que não seja a captura de atenção. De tanta pedrada no charco, os “artistas” tornaram-se patéticos denunciadores da hipocrisia alheia. Sob o manto da irreverência e a crítica não resta mais que moralismo seguidista.

Eis, então, Habacuc, o grande moralizador. Pelas suas próprias palavras afirma que “o importante para mim era a hipocrisia do povo: um animal torna-se o foco de atenção quando o ponho num lugar branco onde as pessoas vão ver arte, e não quando está na rua morto de fome”.
Quando questionado sobre a razão para não utilizar outra forma de exprimir a sua mensagem, a desumanidade é total. “Recordo o que vejo… O cão está mais vivo do que nunca porque continua a dar que falar”.

Não é preciso ser defensor dos animais para perceber o grotesco intelectual em que tudo isto vive. A exibição da morte de um qualquer animal em nome de mais uma pedrada no charco inútil. Habacuc contra o mundo, aos seus olhos carregados de preconceito onde todos seremos hipócritas.
Em nome do desígnio de mudar o mundo, ou de nos mudar a todos, célebres tiranos promoveram os maiores genocídios da história. A Habacuc, em nome de atentar contra a nossa hipocrisia, restou o poder de matar um miserável cão das ruas de Manágua. A arte, essa, já morreu há muito.

Petição online contra Guillermo Habacuc Vargas.

ACTUALIZAÇÃO: 24 de Outubro, 2007.
Novos dados relativos à exposição de Guillermo Vargas foram apresentados desde que o caso foi inicialmente tornado público na web. Justin Anthony chamou-me a atenção para um conjunto de reflexões interessantes de Edward Winkleman. A Galeria Codice, onde a instalação teve lugar, avançou uma declaração de imprensa contendo informação relevante. Aqui estão os factos, tal como adiantados pela directora da galeria Juanita Bermúdez:

- A exposição de Guillermo Vargas teve lugar a 16 de Agosto.
- Um dos trabalhos presentes consistia na “exibição de um cão faminto que o artista recolheu da rua e que durante a exposição apareceu atado a uma corda de nylon, corda essa ligada a uma outra pregada a uma parede a um canto da galeria”.
- “Habacuc baptizou o cão de “Natividad”, em homenagem ao Nicaraguense Natividad Canda (24 anos) que morreu devorado por dois cães Rottweiler numa fábrica de San José, Costa Rica, na madrugada de Quinta-feira, 10 de Novembro de 2005”.
- “O cão esteve nas instalações durante três dias (…). Esteve solto no pátio interior durante todo o tempo, com excepção das 3 horas da exibição, e foi alimentado regularmente com comida trazida pelo próprio Habacuc”.
- O cão escapou da galeria durante o terceiro dia.
- Juanita Bermúdez afirma que tinha a intenção de adoptar o animal no final do evento.
- A Galeria Códice lamenta as declarações feitas por Habacuc, “em que ele afirma que era sua intenção deixar o cão morrer à fome, o que é da sua inteira responsabilidade”.
- O documento conclui com a seguinte afirmação: “Ao cumprir com informar a verdade dos factos, espero que todas essas mesmas pessoas tivessem elevado também a sua voz de repúdio quando Natividad Canda foi devorado pelos Rottweiler (Al cumplir con informar la verdad de los hechos, espero que todas esas mismas personas hayan elevado también su voz de repudio cuando Natividad Canda fue devorado por los Rottweiler)”.

A declaração de imprensa da Galeria Códice entra em contradição com as afirmações de Habacuc, tal como foram referenciadas pelo jornal costa riquenho La Nación; em que o artista recusou confirmar se o cão havia sido alimentado ou se tinha efectivamente morrido.
Uma vez que os factos reais são impossíveis de aferir, qualquer especulação é inútil. Isso, no entanto, não retira legitimidade às críticas que recebeu, em particular no que refere à falta de ética do evento. O cão em questão apresentava não apenas sinais de malnutrição mas também de doença de pele. Áreas de pele ulceradas são sintomáticas de possíveis doenças graves nos cães, por vezes contagiosas e em alguns casos indicadoras de condições fatais como a Leishmaniose – ainda mais prováveis em cães abandonados sem medicação.
Em conclusão, quando alguém toma um animal à sua guarda, é igualmente responsável pelos seus cuidados. Que tal animal tenha sido usado como objecto de exposição é eticamente inaceitável. O contexto da instalação – um tributo a um homem morto por dois cães – torna-o ainda mais incompreensível. A pretensa associação dos dois factos pelo autor e pela directora da galeria retratam a hipocrisia moral por detrás deste suposto gesto de denúncia.

Quanto às afirmações de Guillermo Vargas, são ou um testemunho da sua crueldade ou uma aspiração por publicidade a qualquer custo. Ambos são inaceitáveis e a consequente reacção esmagadora resulta da sua inteira responsabilidade. O direito à liberdade de expressão, na arte como em tudo o resto, não torna ninguém inimputável. Os fundamentos para a petição em curso permanecem, como tal, igualmente válidos.

Art can kill
“Eres lo que lees”. You are what you read. The sentence, written with dog food, was displayed on the white wall of an art gallery. Close to that wall, an abandoned and diseased street dog was left tied to a rope and a wire string. An incense burner was placed nearby where, allegedly, crack and cannabis was burnt during the inauguration. Without food and water, the animal died in the gallery during the next day.
It happened in Nicaragua. It was an “installation” by artist Guillermo Vargas, known as Habacuc.
The situation, documented with several images, received a lot of attention on the web and originated an online petition against it’s author that gathers, as I write these words, close to 50.000 signatures.

The widespread perplexity for this gesture committed in the name of art launched a fiery discussion about its limits. The question isn’t new. People have been debating what art is since Duchamp signed an urinal and entitled it “La Fontaine”. The centennial joke seems, however, to have lost its funniness. In the society of cultural relativism the grotesque has become a new critical endeavour. From cows cut in half and conserved in monoliths of fibberglass to diamonds engraved on human skulls, contemporary art production lives hostage to the trends of time. Art has become a place for the execution of function and aesthetic gesture. All is performance.
That art has to submit to all kinds of degradation is a sad consequence of its desperation for visibility. An art acquitted of any design other than the capture of attention. Moralism cloaked as irreverence and critique.

Here is, then, Habacuc, the great moralizer. On his own words, he states that “the important to me was the hypocrisy of the people: an animal becomes the focus of attention when I put it on a white place where people go see art, not when he’s on the street dying of hunger”. Questioned on the reason why he didn’t use a different form of expressing his message, the inhumanity is complete. “I remember what I see… The dog is more alive now than ever because people are still talking about it”.

It doesn’t take an animal lover to understand the intellectual grotesque of the whole thing. The display of a dog’s death in the name of a useless gesture. Habacuc against the world, in his prejudiced eyes where we are all hypocrites
Intending to change the world, and change us all, famous tyrants promoted the greatest genocides in history. To Habacuc, against our hypocrisy, was left the power to kill a miserable dog of the streets of Managua. As for art, well, maybe it died a long time ago.

Sign the online petition against Guillermo Habacuc Vargas.

UPDATE: October 24, 2007.
New data regarding the Guillermo Vargas dog exhibition has been presented since it was first made public on the web. Justin Anthony referred me to an interesting set of reflections by Edward Winkleman. Galeria Codice, where the installation took place, advanced an official press release containing relevant information. Here are the facts, according to the gallery director Juanita Bermúdez:

- The Guillermo Vargas exhibition took place on August 16th.
- One of the featured works consisted of “displaying a hungry dog that the artist gathered off the street, and during the exhibition he appeared moored with a nylon cord, that was subject as well to another cord that hung of two nails in a corner of the gallery”.
- “Habucuc named the dog "Natividad" in tribute to the Nicaraguan Natividad Canda (24 years) that died devoured by two Rottweiler dogs in a factory of San Jose, Costa Rica, the dawn of Thursday 10 of November of 2005”.
- “The dog remained in the premises for three days (…). He was loose all along in the inner patio, except for the 3 hours that the sample lasted, and was fed regularly with dog food that the same Habucuc brought”.
- The dog escaped from the gallery on the third day.
- Juanita Bermúdez states she had the intention of keeping the dog herself after the exhibition.
- Galeria Codice regrets the declarations offered by Habacuc, “in which he maintained that its intention was to let the dog die to starvation, which is of its absolute responsibility”.
- The press release concludes with the following statement: “As we fully inform the truth of the facts, we wish all those people would have elevated their voices of disgust when Natividad Canda was devoured by the Rottweiler (Al cumplir con informar la verdad de los hechos, espero que todas esas mismas personas hayan elevado también su voz de repudio cuando Natividad Canda fue devorado por los Rottweiler)”.

Galeria Codice’s press release is contradictory to Habacuc’s statements, as they were presented by Costa Rican newspaper La Nación; in which the artist refused to corroborate if the dog had been fed or if he had indeed died.
Since the real facts cannot be ascertained, speculation is useless at this point. That, however, takes no legitimacy to the criticism it received, particularly on the unethical extent of the display. The dog in question presented not only signs of malnutrition but also of skin disease. Ulcerated, crusted areas of skin are symptomatic of several serious health conditions in dogs, often contagious and sometimes an indication of fatal afflictions like Leishmania – even more probable on a stray, unmedicated dog.
The bottom line is that when someone takes an animal into his guard, he should take full responsibility for its care. That such an animal was used as an object of display is ethically unacceptable. The context of the installation – a tribute to a man killed by two dogs – makes it even more incomprehensible. The association of the two facts by both the author and gallery director reveal the moral hypocrisy behind this alleged gesture of social denunciation.

As for Guillermo Vargas’s statements, they are either a testimony of his cruelty or an aspiration for publicity at all costs. Both are seemingly unacceptable, and the consequent overwhelming reaction is of his own responsibility. The claim for a right to free speech, in arts as in everything else, doesn’t exempt one from accountability. The grounds for the online petition remain, therefore, just as valid.

9 Comments:

At 28 de outubro de 2007 às 15:08, Blogger Carmo Mendonça said...

Pois neste momento as assinaturas vão já em 137.300 e espero que venham a ser muitas mais! Também divulguei no meu blog e espero que todos divulguem o mais que poderem....

 
At 29 de outubro de 2007 às 15:03, Anonymous Anónimo said...

Não está na hora de rever o conceito "arte" e, talvez, não se encaixando na qualidade de artista, desistir de seguir nessa profissão?

Lamentável o episódio do cachorro exposto na galeria. Lamentável a galeria, até então, anônima mundialmente, utilizar de artifício para ficar famosa: expor um artista sem talento, anônimo, que só ficou conhecido pela atrocidade.

Para senhores da Galeria Códice, o Holocausto também é arte? Seriam Hitler, Stalin, Saddan, Bin Laden, Bush artistas?????? E Somoza? Para a Nicaragua... como seria classificado Somoza? Artista de impacto?

Lamentável! Ridículo! Patético: para o "artista"e a "galeria"que se sujeitam a "desumanidade", por uma pseudo-arte.

 
At 30 de outubro de 2007 às 22:20, Anonymous Anónimo said...

"as pessoas sensíveis não são capazes de matar galinhas / porém são capazes de comer galinhas"

Sophia

 
At 4 de novembro de 2007 às 20:38, Anonymous Anónimo said...

Que esse desgraçado MORRA !!! Que façam com ele o mesmo que fizeram com o pobre animal.

 
At 7 de novembro de 2007 às 15:35, Anonymous Anónimo said...

Aposto que se este "animal" não tivesse feito esta Obra de Arte os 100 e tal mil pessoas que assinaram a petição continuavam a abandonar os seus animais de estimação em férias e a dar-lhes desprezo. O objectivo aqui é acordar as pessoas para a realidade dos maus tratos para com os animais e não ter nome! Acho que ele estava plenamente consciente que ia ser odiado por todo o mundo ao fazer o que fez, mas ao mesmo tempo sabia que abria os olhos aos milhões de anormais que violam os direitos dos animais todos os dias a toda a hora! Existe muita hipocrisia neste protesto já para não falar da falta de cultura por pessoas que pensam que sabem o que é Arte e o seu Objectivo.

 
At 16 de fevereiro de 2008 às 00:14, Anonymous Anónimo said...

Devia-se fazer justiça, tanto o Guillermino quanto o dono da galeria que permitiu este absurdo deveriam ser punidos com medidas drasticas ou então que nos provem que o cachorro esta vivo e bem

 
At 10 de abril de 2008 às 14:41, Anonymous Anónimo said...

"Arte" seria Gillermo Vargas fazer o mesmo a ele próprio... e deixar-se morrer à fome... não ía fazer cá falta nenhuma!

 
At 20 de fevereiro de 2011 às 02:41, Blogger EverySitting said...

Considero esta instalação de Habacuc uma forma de mostrar a desumanidade que se vive actualmente neste mundo (pois ninguém foi capaz de alimentar o cão, ninguém participou na própria arte e ninguém a transformou). Ao mesmo tempo, pelo que ouvi, estava escrito na parede (em comida de cão) "eres lo que lees", portanto, se toda a gente que foi à exposição tira-se uma ou duas ou três ou quatro, (...) pedaços, a frase desapareceria, já ninguém seria o que lê, nem o cão morria à fome, tal como foi maioritariamente divulgado. Admito que na altura, quando isso surgiu nas notícias, também considerei um acto desumano por parte do autor, mas hoje finalmente penso ter descoberto mais uma capa deste polémico enigma artístico. Existindo petições para condenar o artista é levantada a questão da responsabilidade do autor perante o objecto criado. Até que ponto os autores podem ser desresponsabilizados pela sua obra? Até que ponto depende ele do efeito na interacção com o resto (que é muito)? Essas petições não existiriam se o desfecho tivesse sido aquele que, na minha tese, o autor desejava. A Arte é sempre um reflexo da realidade... Quanto pior a arte, pior a realidade!

 
At 1 de março de 2011 às 11:56, Blogger EverySitting said...

Habacuc contra o mundo ou o mundo contra habacuc?

 

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